quinta-feira, 6 de junho de 2013

Resenha crítica do ensaio "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", de Walter Benjamin

            As obras de arte em sua essência sempre foram objeto de reprodução. Essa imitação foi praticada por discípulos, mestres e por diversas outras pessoas, cada uma com interesses distintos e específicos. Mas a reprodução técnica de obras de arte é um processo novo, que vem se desenvolvendo de forma intensa e crescente. A imprensa teve importância decisiva na atual conjuntura, mas fez parte de um contexto muito mais amplo da reprodução técnica, que envolve a xilogravura, a estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia. A litografia permitiu às artes gráficas colocar no mercado suas produções em massa e sob a forma de criações novas. Mas foi ultrapassada pela fotografia, onde a mão foi substituída pelo olho que apreende mais depressa que a mão desenha. E a reprodução técnica do som que surgiu e atingiu um alto padrão de qualidade.
            No entanto, segundo Benjamin, nas reproduções, um elemento se ausenta: o “hic et nunc” ou o “aqui e o agora”. Este elemento seria a história e toda a raiz e tradição do objeto em si. A reprodução técnica tem mais autonomia que a manual e pode colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original, por estas duas razões, o autêntico não preserva toda a sua autoridade com relação à reprodução técnica. Mesmo o conteúdo ficando intacto, as reproduções desvalorizam o “seu aqui e agora”, sua autenticidade, o testemunho se perde, pois depende da materialidade da obra.
O que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. (...) essa decadência assenta em duas circunstâncias que estão ligadas ao significado crescente das massas, na vida atual. ou seja: ‘aproximar’ as coisas espacial e humanamente é atualmente um desejo das massas tão apaixonado como a sua tendência para a superação do caráter único de qualquer realidade, através do registro da sua reprodução. Cada dia se torna mais imperiosa a necessidade de dominar o objeto fazendo-o mais próximo na imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução. (BENJAMIN, 1992, pp. 79-81) 
            A aura, a qual Benjamin se refere, é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: “a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, 1994, p. 170). Existem duas circunstâncias que explicam o declínio atual da aura, que são: fazer as coisas ficarem mais próximas e a tendência das massas de superar o caráter único dos objetos através de sua reprodutibilidade. Na imagem, a unidade e a durabilidade se associam intimamente como na reprodução, a transitoriedade e a repetibilidade.
            A unicidade da obra é idêntica à sua inserção no contexto da tradição. As mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, depois, religioso. O valor único da obra de arte autêntica tem sempre um fundamento teológico. Com o advento da fotografia levou a arte a pressentir a proximidade de uma crise, ela reagiu ao perigo com a doutrina da arte pela arte. No momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se na política. No cinema, a reprodutibilidade técnica não é uma condição externa para sua difusão maciça. A difusão se torna obrigatória pelo alto custo de produção de um filme.
No entanto, em O conceito de aura, de Walter Benjamin, e a indústria cultural”, Bráulio discorda da argumentação de Benjamin e explica:
O aqui e agora da obra de arte são mantidos, se não como aparição única da obra de arte, ao menos como aparição rígida e inflexível da mesma, igualmente distante e não-apropriável pelo usuário. As relações de propriedade sobre a obra de arte são preservadas, protegidas pelo direito do autor. (2010, p. 133)
            Os dois pólos no interior das obras de arte são o valor de culto e o valor da exposição. Assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções novas, entre as quais a artística, talvez se revele mais tarde como secundária.
            Com a fotografia, o valor de culto começa a recuar, diante do valor de exposição. O refúgio derradeiro valor de culto foi o culto da saudade, dos rostos humanos dos entes ausentes e defuntos. A aura é simbolizada pela última vez na expressão fugaz de um rosto. Atget radicalizou esse processo fotografando as ruas de Paris desertas de homens em 1900.
            Os gregos só conheciam dois processos técnicos para reprodução de obras de arte, o molde e a cunhagem. A moeda e a Terracota eram as únicas fabricadas em massa. As outras eram únicas e irreprodutíveis. Os gregos foram obrigados então a produzir valores eternos. O ponto de vista artístico que marcou toda a evolução artística posterior era o oposto do nosso atual onde as obras são reprodutíveis em grande escala e amplitude. 
            Ao se emancipar dos seus fundamentos no culto, a arte perdeu qualquer aparência de autonomia. Porém, a época não se deu conta da refuncionalização da arte. Mas as dificuldades com que a fotografia confrontou a estética tradicional eram pequenas em comparação com as suscitadas pelo cinema.
            Ao contrário do ator de teatro, o intérprete de um filme não representa diante de um público qualquer a cena a ser reproduzida e sim diante de especialistas: produtor, diretor, operador que podem intervir a qualquer momento. O intérprete de um filme não representa diante de um público, mas de um aparelho.
            Para o cinema, é menos importante o ator representar um outro personagem que ele representar a si mesmo diante do aparelho. Pirandello diz que: “O ator de cinema sente-se exilado, não somente do palco, mas de si mesmo.” Como a representação do homem pelo aparelho, a auto alienação humana encontrou uma aplicação criadora. A imagem do homem, especular, torna-se destacável e transportável para um lugar em que ela possa ser vista pela massa. O capital cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias imanentes a esse controle. Esse capital estimula o culto ao estrelato, estimula o culto do público e a consciência corrupta das massas. A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e quanto menos colocar em seu centro a obra original. A arte dramática é a que enfrenta a crise mais manifesta. Os astros cinematográficos só muito raramente são bons atores, no sentido de teatro. Pois é menos importante que o intérprete represente um personagem diante do público que ele represente a si mesmo diante da câmera. Essa problematização do autor lembra o trecho do filme Waking Life, 2001, do diretor Richard Linklater: “Hollywood transformou o cinema em apenas um meio para contar histórias. Pega-se livros ou histórias, um roteiro e encontra-se alguém que encaixe. É ridículo. Não deveria se basear no roteiro. Deveria basear-se na pessoa ou na coisa. Não é a toa que existe um estrelato, trata-se então daquela pessoa ao invés da história.”.
            Dessa forma, segundo Tomaim, (2004, p.105), temos que o cinema, para Benjamin “é uma arma perigosa sob domínio de movimentos contra-revolucionários, serve à política ritualizada como meio de tornar presente às multidões diante da tela seus eventos mitificadores de um regime: os ritos dos desfiles, dos jogos e dos meetings. O cinema completa o rito fascista.”
            A técnica do cinema assemelha-se à do esporte no sentido de que nos dois os espectadores são semi-especialistas. Durante muito tempo, houve uma separação rígida entre um pequeno número de escritores e um grande número de leitores. Com a ampliação da imprensa, a situação modificou-se, um grande número de órgãos e de leitores começou a escrever. Com isso, a diferença essencial entre autor e público começa a desaparecer. A competência literária passa a fundar-se na formação politécnica e não na educação especializada. Tudo isso é aplicável ao cinema, pois essa revolução já se completou em grande parte na prática do cinema, sobretudo no cinema russo. Toda forma de arte amadurecida está no ponto de intersecção de três linhas evolutivas. Em primeiro lugar, a técnica atua sobre uma forma de arte determinada. Em segundo lugar, em certos estágios de seu desenvolvimento as formas artísticas tradicionais tentam produzir efeitos que mais tarde serão obtidos sem qualquer esforços pelas novas artes. Em terceiro lugar, transformações sociais muitas vezes imperceptíveis acarretam mudanças na estrutura da recepção, que serão mais tarde utilizadas pelas novas formas de arte. 
            No teatro existe um ponto de observação que não existe nas filmagens do cinema, que permite preservar o caráter ilusionístico da cena. Esse ponto não existe no estúdio. A natureza ilusionística do cinema é de segunda ordem e está no resultado da montagem. A relação entre o cinegrafista e o pintor é que o pintor observa em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada a ele próprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa realidade. As imagens que cada um produz são, por isso, essencialmente diferentes. A imagem do pintor é total, do operador é composta de inúmeros fragmentos que se recompõem segundo novas leis.
            A reprodutibilidade técnica da obra modifica a relação da massa com a arte. Um indício social é que quanto mais se reduz a significação social de uma arte, maior fica a distância, no público, entre a atitude de fruição e a atitude crítica, como se evidencia com o exemplo da pintura. No cinema, as reações do indivíduo, constituem a reação coletiva do público que são condicionadas pelo caráter coletivo dessa reação. A pintura não pode ser objeto de uma recepção coletiva, isso é um obstáculo social num momento que ela se vê confrontada com massas, de forma imediata.
            Uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho, pela forma como ele representa o mundo, graças a esse aparelho, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência e por outro assegura-nos um espaço de liberdade. A câmera intervém com seus inúmeros recursos auxiliares, suas imersões e emersões, suas interrupções e seus isolamentos, suas extensões e suas acelerações, suas ampliações e suas miniaturizações. O cinema fez pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camundongo Mickey, que hoje percorre o mundo todo.
            Uma das tarefas mais importantes da arte foi sempre a de gerar uma demanda cujo atendimento integral só poderia produzir-se mais tarde. As extravagâncias e grosserias artísticas que se manifestam nas “épocas de decadência” derivam do seu campo de forças mais rico. O dadaísmo é um exemplo disso, que tentou produzir através da pintura ou da literatura os efeitos que o público procura hoje no cinema. O dadaísmo sacrificou os valores de mercado intrínsecos ao cinema, em benefício de intenções mais significativas, das quais ele não tinha consciência. Eles estavam menos interessados em assegurar a utilização mercantil de suas obras que em torná-las impróprias para qualquer utilização contemplativa. O comportamento social provocado pelo dadaísmo foi o escândalo. Essa obra tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública. Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira, a imagem se move, mas na segunda, não. Esta convida o espectador à contemplação, diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do filme, isso não é possível. O cinema corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo.
            As massas procuram na obra de arte distração, enquanto o conhecedor a aborda com recolhimento. “Para as massas, a obra de arte seria objeto de diversão, e para o conhecedor, objeto de devoção” (BENJAMIN, 1985, p.192). Desde o início a arquitetura foi o protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério de dispersão. Os edifícios comportam uma dupla forma de recepção: pelo uso e pela percepção, por meios táteis e óticos. Não existe nada na recepção tátil que corresponda ao que a contemplação representa na recepção ótica. Na arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica. Como os indivíduos se sentem tentados a esquivar-se a novas tarefas, a arte consegue resolver as mais difíceis e importantes sempre que possa mobilizar as massas. É o que ela faz, hoje em dia, no cinema. A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado.
            O fascismo tenta organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir. Deve-se observar aqui, que a reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas. Esse processo está estreitamente ligado ao desenvolvimento das técnicas de reprodução e registro. A política se deixou impregnar, com d’Annunzio, pela decadência, com Marinetti, pelo futurismo e com Hitler, pela tradição de Schwabing (bairro boêmio de Viena). Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa, preservando as relações existentes. Segundo o manifesto de Marinetti, a estética da guerra moderna se apresenta do seguinte modo: como a utilização natural das forças produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, as intensificações dos recursos técnicos, dos ritmos e das fontes de energia exigem uma utilização antinatural. Essa utilização é encontrada na guerra, que prova com suas devastações que a sociedade não estava madura para fazer da técnica o seu órgão, e que a técnica não estava avançada para controlar as forças elementares da sociedade.
            Walter Benjamin nos faz repensar a arte e a modernidade enquanto progresso humano. E o papel do moderno no ponto de vista materialista.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. (pp. 11-105).

ARAUJO, Bráulio Santos Rabelo de. O conceito de aura, de Walter Benjamin, e a indústria cultural. In: Pós. Rev Programa Pós-Grad Arquit Urban. FAUUSP [online]. 2010, n.28. (pp. 120-143).

TOMAIM, Cássio dos Santos. Cinema e Walter Benjamin: para uma vivência da descontinuidade. In: Revista Estudos de Sociologia. 2004, n. 16. (pp. 101-122)

WAKING life. Direção: Richard Linklater. [S.l.]:  Fox Home Entertainment, 2001. 1 DVD (99 min).

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